O que as faturas de cartão contam sobre 2021?
Em 2021, a quantidade de pessoas com cartão de crédito nas funções à vista e rotativo/parcelado somavam 96,2 milhões, de acordo com o mais recente Relatório de Cidadania Financeira do Banco Central. Apesar de uma redução importante de 39 para 36 milhões de novas operações só entre janeiro e julho, em dezembro o número de clientes com novas concessões retomou ao patamar de 2019, de acordo com o BC. Entre as maiores emissoras de cartões do país, a Credicard fez um Raio X de como o brasileiro usou o cartão em 2021 e detectou, por exemplo, um forte crescimento de gastos com reformas de imóveis, enquanto as despesas com viagens recuaram.
Segundo o levantamento, feito com base nos dados de consumo dos cartões da marca, entre as categorias que mais tiveram incremento no valor consumido na comparação anual, o pagamento de empreiteiros teve um aumento de 53%. Na mesma linha, houve aumento de 68% nas despesas dos clientes relacionadas ao serviço de arquitetos responsáveis por projetos de reforma.
A rotina de trabalho remoto e outras atividades, como estudos e cuidados via telemedicina, gerou a necessidade legítima de mais conforto, na avaliação de Paula Sauer, professora de economia comportamental da ESPM. “Estamos falando de dois anos em casa. Não dá para ficar improvisando um escritório, uma sala para estudar. Isso acabou imputando às famílias uma despesa que antes não era urgente, porque o espaço do trabalho e da escola estavam disponíveis”, comenta.
O risco para a saúde financeira ao fazer mudanças na estrutura da casa ou até mesmo pequenos ajustes – só em itens decorativos os clientes gastaram quase 64% a mais na comparação dezembro 2021 ante ao mesmo mês de 2020 – usando o cartão reside no chamado “sunk cost”, os custos irrecuparáveis.
“Quando você se planeja para fazer uma reforma, o viés comportamental faz com que você ignore os valores gastos. É como se o cérebro falasse: ‘já que comecei, não tem problema gastar um pouco a mais para incrementar o projeto’. O sunk cost, se traduz em um gasto 30% maior do que o valor planejado nos casos de reforma. Isso é um risco importante de endividamento”, explica.
Outro ponto de preocupação é apontado por Dirlene Silva, economista e fundadora da DS Estratégias. “Preocupe-se com a taxa de juros. Quando o parcelamento é feito pela administradora, e não pela loja, significa que em todas as parcelas incidirão juros. Antes de parcelar, é preciso perguntar em quantas vezes é possível fazer a compra sem juros”.
Considerando aquisições que envolvem um volume maior de recursos, os gastos com automóveis e veículos (que englobam concessionárias, revendedores de carros, caminhões e motos, lojas de peças e acessórios e postos de combustíveis, entre outros) cresceram 34,7% no período, diz a Credicard.
Bem estar humano e animal em destaque
Os números da empresa de soluções de pagamentos, que pertence o Itaú Unibanco, apontam que, apesar da retomada de gastos mais associados ao consumo fora de casa (+31% em Bares e Restaurantes), em 2021, depois da casa, os brasileiros consolidaram a tendência de aumento dos gastos com os animais domésticos.
A compra de brinquedos e petiscos e serviços de banho e tosa foram as formas que os humanos usaram para retribuir os fiéis e pacientes companheiros. Soma-se a isso o fenômeno dos últimos anos de humanização — em que os pets são considerados membros da família — e a conta das PetShops ficou quase 25% maior na comparação anual. Na mesma linha, os gastos com veterinário somaram alta de 22%.
Na hora de cuidar dos bichinhos, as especialistas reforçam a necessidade de também proteger o bolso: “Eu não posso prever que o meu pet vai adoecer. Mas posso guardar um dinheiro mês a mês para que ter o recurso quando for necessário. Esse é um exemplo de situação que algumas famílias poderiam evitar um endividamento com um planejamento financeiro adequado”, comenta a professora Paula Sauer.
“É essencial entender que cartão de crédito é dinheiro e a fatura mensal do uso do meio de pagamento não pode estar acima de sua capacidade financeira. Uma compra com o cartão significa assumir uma dívida. Por isto, reavaliar os hábitos de consumo deve ser uma constante, lembrando que saúde financeira representa sobretudo, qualidade de vida”, complementa Dirlene, ao indicar a prática da regra dos 3 P’s: Por que comprar? Preciso? Posso pagar sem sacríficos, como entrar no rotativo do cartão?
Outra categoria de destaque foi a de cuidados com beleza e bem estar, com um aumento constante ao longo do ano. Segundo o levantamento, os gastos com salões de beleza, massagem e spa cresceram 47% em 2021 na comparação com 2020. O faturamento no último mês de dezembro foi, ainda, o mais alto do ano. Ao observar os dados, a professora da ESPM lembra que a categoria não foi deixada de lado pelas pessoas na pandemia, só passou a ser consumida de outra forma no período de distanciamento social.
“Há um viés comportamental muito forte nessa categoria. As pessoas consomem para serem vistas de uma determinada maneira nos ambientes onde circulam. Os gastos não deixaram de ser feitos, só migraram. Teve um aumento importante nas compras feitas pela internet de cursos de maquiagem, produtos de beleza, e itens de cuidados pessoais para serem consumidos em casa”, diz.
Na contramão dos resultados, na comparação entre dezembro e novembro de 2021, os gastos envolvendo passagens aéreas (- 25%), bufê (- 10,3%) e diversão e entretenimento (-4,5%) já foram afetados por conta do aumento dos casos de covid.
Pagamentos em atraso do crédito rotativo dobram em dezembro, segundo BC
Fugir dos riscos financeiros de parcelar o total da fatura do cartão de crédito é um dos ensinamentos que a educação financeira busca difundir. A fama dos juros cobrados nesta modalidade são bem conhecidos por boa parte da população: podem chegar a mais de 350% ao ano, um dos mais altos do mundo. Na prática, esclarece a economista Dirlene Silva, significa que se R$ 1.000 forem deixados para trás, em 12 meses este valor se transforma facilmente em R$ 4.500, ou seja, mais de 4 vezes o valor original.
Apesar da recomendação de usar o cartão de forma consciente para evitar o crédito rotativo, nem sempre isso é possível. Dados do Banco Central mostram que, no último mês de novembro, 19,13% dos clientes que usaram o rotativo estavam com os pagamentos atrasados entre 15 e 90 dias. No mesmo período em 2020, o percentual estava em 9%. O índice de atrasos só não é pior do que o registrado em maio de 2015, quando 19,18% dos clientes estavam atrasados.
Uma das possíveis causas para o endividamento é o fim do pagamento do auxílio emergencial de R$ 600, então, em vigor em 2020. Com a instabilidade econômica e sem melhora de renda, o atraso dos pagamentos se abateu sobre muitas famílias.
“Desde que a pandemia começou, assistimos a inúmeras situações que levam ao endividamento, como perda de renda, desemprego, morte ou adoecimento de um familiar, divórcios. A falta de planejamento financeiro está longe de ser o principal vilão do endividamento”, observa Paula.
Entre a população de baixa renda, as modalidades de cartão de crédito à vista e de cartão de crédito parcelado e rotativo somam os maiores volumes do crédito total usado em 2021, de acordo com cenário agregado observado no Relatório de Cidadania Financeira.